“Imagine você ter tatuado na testa todas as merdas que fez na vida. Enquanto querem a punição eterna, o texto bíblico de Jeremias 31:34 conta-nos algo totalmente diferente: ‘diz o Senhor: lhes perdoarei a sua maldade e nunca mais me lembrarei dos seus pecados’. Todo mundo dá um mole na vida – e para alcançar a maturidade e a mudança de comportamento é preciso dar tempo ao tempo. Deus tem paciência; alguns cristãos, não” – afirmou em suas redes sociais Wagner Francesco, teólogo com pesquisas em Direito Penal e Processual Penal.
A reflexão de Francesco foi parte de ampla comoção em repúdio à tortura de um jovem por dois homens, que foram presos em São Bernardo do Campo após divulgarem na internet um vídeo em que eles tatuavam a inscrição “eu sou ladrão e vacilão” na testa da vítima de 17 anos acusada por eles de ter furtado uma bicicleta. Além disso, cortaram o cabelo para assegurar que a frase ficasse exposta. O jovem foi encontrado dias depois. Ele nega o crime e a família contou de seus problemas com a dependência química.
No âmbito jurídico a comoção foi grande, uma vez que é muito comum lidar na advocacia com pessoas de várias classes sociais acusadas de terem cometido crimes. Gustavo Badaró, advogado e professor livre docente de Processo Penal da Faculdade de Direito da USP, fez uma reflexão que repercutiu nas redes. O professor imaginou como seria se cada conduta moralmente reprovada feita vez ou outra por pessoas de classe econômica mais favorecida fosse tatuada na testa e concluiu: “no meu caso, diria: para mim ia faltar testa!”
NULL
NULL
Para a ativista do movimento negro Stephanie Ribeiro, violências como essa sempre aconteceram, mas a diferença é que as pessoas se sentem mais à vontade para tornar pública a barbárie nas redes como forma de demonstrar poder e ideias – “O Brasil já tem em média um linchamento por dia, já estamos no topo dos índices de violência doméstica e temos dados que apontam que para cada 100 assassinatos 70 das vítimas são negras, comprovando o genocídio. Já vivemos a barbárie, agora as pessoas só tornam público como uma forma de demonstrar seu poder e ideias”.
Reprodução
Jovem de 17 anos teve a frase tatuada na testa por dois homens, que foram presos em São Bernardo do Campo
“É assustador ver que um menino menor de idade foi torturado por suposto roubo de bicicleta. É assustador a raiva nos comentários da vakinha feita para auxiliar esse jovem na remoção da tatuagem. É assustador como o fascismo ganha forças em cima da vulnerabilidade de negros, pobres, doentes mentais, deficientes físicos, mulheres, e as pessoas defendem como sendo liberdade de expressão” – completou Stephanie, que atuou intensamente para arrecadar verba para a “vaquinha”.
Organizada pela página Afroguerrilha no final de semana, a arrecadação coletiva conseguiu arrecadar verba para custear um procedimento para retirada da tatuagem na testa e também no tratamento psicológico dele. Em nota, o grupo fez o questionamento inevitável – “como disse aquele Jesus que muitos aí dizem seguir: ‘Quem nunca cometeu um erro, que atire a primeira pedra… Amai o outro como a ti mesmo’. Esse amor era um que transformava, não um que condenava. Você gostaria de ser torturado e ter seus (supostos) erros tatuados na sua testa?”.
Publicado originalmente no site Justificando