Ainda estava escuro quando Nilda de Rosalio saiu. Foi o clarim soado pelos partidários do presidente Hugo Chávez que a acordou. A viúva, que mora há anos no bairro popular La Unión, na zona leste de Caracas, não se incomodou. Ela queria votar bem cedo no referendo da emenda constitucional sobre o fim do limite à reeleição, realizado neste domingo na Venezuela. “Para mim, a resposta é ‘sim’. Quero que o presidente tenha a possibilidade de ser candidato em 2012. Sei muito bem o que mudou no bairro com ele”.
(O fechamento oficial das mesas de votação está previsto para as 18h, 20h30 de Brasília, ou após terem votado todos os eleitores que estiverem na fila. O Conselho Nacional Eleitoral calcula que, três horas depois do fechamento da última mesa, será divulgado um primeiro boletim sobre os resultados)
Nilda gerencia desde 2003 um restaurante popular no primeiro andar de sua casinha. Todos os dias, serve 150 refeições aos mais pobres do bairro, de graça. O Estado paga. “A alimentação, a educação, a saúde, a cultura, todos os direitos que o povo tem hoje sumiriam se o comandante deixasse o poder”, afirma.
Ela repete os argumentos de campanha do governo – de que a permanência de Chávez no poder é a única maneira de garantir a sobrevivência das missões, programas sociais atípicos, estabelecidos há cinco anos, que permitiram a redução de pobreza mais significativa da América Latina, como acabou de confirmar a Cepal, o instituto econômico das Nações Unidas na região.
Esta espécie de chantagem eleitoral está em parte justificada, segundo os chavistas. “Alguns prefeitos da oposição já começaram a recuperar os locais onde as missões trabalhavam, depois de terem ganhado as eleições em novembro passado”, denuncia Gustavo Borges, um dos líderes dos movimentos sociais do bairro humilde 23 de Enero. Mas ele reconhece que, mesmo nos bairros que dependem de autoridades chavistas, as missões estão começando a declinar.
Financiadas com a receita excedente do petróleo numa administração paralela, as missões são criticadas há meses pela falta de institucionalização e fiscalização, que abrem brecha para gestão duvidosa e corrupção. As denúncias vêm da oposição, mas também da base chavista. Agora, parece que os programas sociais enfrentam outro problema: a falta de recursos.
A greve de 2003
Em 2003, a oposição tentou derrubar Hugo Chávez organizando uma greve geral e bloqueando a atividade da estatal petroleira PDVSA. A aposta era de que nenhum presidente pode se manter no poder depois de dois dias de greve do setor petrolífero. A economia do país afundou, com uma queda de 24% do Produto Interno Bruto (PIB), mas Chávez resistiu por 63 dias, até a rendição dos grevistas. A crise deu ao governo os instrumentos legais para demitir 18 mil funcionários da PDVSA e tomar o pleno controle da principal atividade econômica do país. Desde então, a estatal é o pilar da política de distribuição da renda aos mais pobres.
“A tarefa da PDVSA não é só produzir petróleo e pagar impostos e regalias ao Estado”, explica o economista Orlando Ochoa. “Ela assume também o financiamento das missões, de projetos agrícolas e industriais, o apoio aos países da América Central e do Caribe, e reparte o resto dos lucros dentro de vários fundos de reserva controlados diretamente pelo Poder Executivo”.
As exportações venezuelanas de petróleo e produtos derivados passaram de 51,45 bilhões de dólares em 2007 para 92 bilhões em 2008. “Mas a única explicação para o aumento é a subida do preço do barril”, insiste Elio Ohep, editor em Caracas do site petroleumworld.com. Embora a produção oficial do país seja de 3,5 milhões de barris por dia, a Opep (Organização dos Países Exportadores de Petróleo) considera que na verdade não excede 2,3 milhões. Em dez anos, a produção venezuelana declinou um milhão de barris. Houve perda de quadros qualificados e queda de investimentos.
“O petróleo é assim, precisa-se gastar muito somente para manter um nível de produção, quanto mais para aumentá-lo”, sublinha Elio Ohep. Uma situação paradoxal, porque ao mesmo tempo, a Venezuela está se tornando o país com as principais reservas petrolíferas do mundo, substituindo a Arábia Saudita. No ano passado, já foi comprovada a existência de 152 bilhões de barris. Caracas prevê chegar a 173 bilhões até o final de 2009, e mais de 300 bilhões em dois anos. Para o editor do petroleumworld.com, “esta política de certificação das reservas permite ao governo negociar em boa posição com as transnacionais do setor. Deste ponto de vista, a política de Chávez foi excelente. Pena que a gestão da empresa seja catastrófica”, diz o analista.
O PIB em queda
A queda acentuada dos preços do petróleo agrava o panorama. Há três meses, a PDVSA deixou de pagar uma grande parte de seus fornecedores e prestadores de serviços. Alguns já pararam o trabalho para protestar. A falta de liquidez da estatal põe em risco toda a máquina pública. O governo tinha previsto um orçamento de 77 bilhões de dólares para 2009, calculando um preço médio de 60 dólares por barril e uma taxa de crescimento do PIB de 6%.
Na sexta-feira passada, o barril do óleo venezuelano (mais pesado e mais viscoso, portanto, menos valioso) chegou a valer apenas 36 dólares. Em 2008, a média foi de 88 dólares e o crescimento atingiu só 4,8%. “Para mim, não há dúvida. Vamos entrar em recessão já no segundo trimestre”, prevê Orlando Ochoa.
Diante das perspectivas pouco animadoras, a Venezuela não está impotente. As reservas cambiais são elevadas, apesar da falta de transparência que impede conhecer o nível exato dos recursos. “Pelo menos 82 bilhões de dólares”, calcula Mark Weisbrot, co-diretor do Centro de Pesquisas de Política Econômica em Washington. “Dá para agüentar dois anos, e todo mundo sabe que o petróleo vai voltar a subir”.
Mas o economista alerta sobre a necessidade de acabar com a âncora cambial, estabelecida a partir de 2003. A medida provocou uma supervalorização do bolívar (hoje cotado a 2,15 dólares no mercado oficial e 5,7 no paralelo) que atrapalha a diversificação da economia. “O controle de câmbio faz com que as importações sejam artificialmente mais baratas e que as exportações não petroleiras sejam muito caras, colocando as empresas venezuelanas numa posição muito mais fraca”, explica. Com 93% de suas receitas procedentes do petróleo, a Venezuela é mais que nunca um país monoprodutor.
A economia não é tudo
A oposição aposta que a provável redução do gasto social, num contexto de inflação alta, deve fazer os mais pobres se voltarem contra Chávez. “É uma visão muito restrita do povo. Não é só para receber ajuda que as pessoas apóiam o presidente”, responde Reinaldo Iturriza, sociólogo próximo ao governo. Ele insiste na importância da inclusão política, cultural e simbólica dos últimos dez anos, além das questões materiais. “Talvez tenhamos uma crise econômica, mas não necessariamente social. Tudo vai depender de como o governo maneja as coisas”, conclui.
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